terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Matéria publicada no "O ESTADO RJ" Online

Fernando Gomes: roteirista, diretor e manipulador de bonecos

Criador de famosos personagens infantis conta sobre sua carreira, projetos, dificuldades e o que espera do futuro da programação brasileira

Foto: Jair Brtolucci

Ele não é a Xuxa nem o Bozo e seu rosto raramente aparece na telinha. Mas nem por isso, ele deixa de ser uma das figuras mais importantes para a programação infantil brasileira dos últimos 20 anos. Trata-se de Fernando Gomes, ator, manipulador de bonecos e diretor, que participou de praticamente todos os programas da fase de ouro dos infantis da TV cultura nos anos 90, criador de personagens inesquecíveis como o boneco X, do X - Tudo e o menino Júlio do Cocoricó.

Fernando Gomes fala, sobre sua carreira, seus projetos e sobre a televisão feita para as crianças nos dias atuais. Confira a entrevista:



O Estado RJ: Conte sobre seu início de carreira, e como começou seu trabalho com bonecos?

Fernando Gomes: Em 1985 descobri meio por acaso um programa infantil na TV Cultura chamado Bambalalão que entre várias atrações, tinha a participação de bonecos. Me encantei por eles, e só depois, assistindo muito ao programa descobri que o que eu gostava mesmo era do trabalho dos atores-bonequeiros, como a Memélia de Carvalho, a Helen Helene e principalmente o Chiquinho Brandão. De curiosidade tentei fazer um boneco. Confeccionei meu primeiro boneco e mostrei à Memélia, que gostou e colocou no programa. Todos gostaram e passaram a me pedir bonecos. Pouco depois fui convidado a participar do programa por uma semana, substituindo a folga de uma atriz. Terminada a semana fui chamado novamente e desde então estou na TV Cultura.


OERJ: O Bambalalão foi sua grande escola?

Gomes: Sem dúvida nenhuma. Além de ser minha primeira experiência em TV, tinha o fato de o Bambalalão ser gravado como se fosse um programa ao vivo. Como por muitos anos anteriores o programa era ao vivo, quando ele passou a ser gravado, usava-se a mesma fórmula, e aí não tem jeito. Você não tem muita chance de errar, pois senão seu erro irá para o ar. A atenção de todos que fazem um programa ao vivo é muito maior. E foi esse tipo de atenção, essa experiência que levei para todos meus trabalhos posteriores.


OERJ: Você não só manipula, mas também cria a personalidade dos bonecos. Como é esse trabalho?

Gomes: A personalidade da maioria dos personagens de qualquer programa de ficção geralmente é criada pelos autores ou roteiristas dos projetos. Claro que quando um ator (isso vale também para bonecos) interpreta algum papel, fatalmente acrescentará muito dele próprio a esses personagens. O que eu crio mesmo, muitas vezes com muita liberdade é a estética de algum boneco. Quando digo que “criei” alguns bonecos do Cocoricó não criei a estética deles. Por exemplo as três galinhas, Lola, Lilica e Zazá, não são manipuladas por mim, não criei o perfil, mas sim o visual de todas elas.


OERJ: Dentre eles, qual foi mais difícil na criação do personagem?


Gomes: Dos personagens que tive a liberdade de criar a personalidade, creio que os primeiros que fiz o Beleléu e o Gaspar do “Bambalalão” foram muito difíceis, exatamente por não receber um texto já escrito dando os caminhos que esse boneco deve seguir. Cada quadro de bonecos durava aproximadamente 4 minutos e não existia texto para isso.


OERJ: De todos seus “filhos”, existe algum que você tenha um carinho especial?

Gomes: Tenho alguns “filhos” que marcaram muito, mas vou destacar três: Mestre Iodo do “Agente G”. O X do “X - Tudo” e o Júlio do “Cocoricó”.


OERJ: Em meados dos anos 90, você deixou a Cultura, e foi trabalhar no Agente G, da Record. Existe alguma diferença na linha das duas emissoras?

Gomes: Na verdade eu nunca deixei a TV Cultura, até porque nunca fui da TV Cultura. Não tenho nenhuma exclusividade com a TV Cultura então posso trabalhar com qualquer emissora desde que os horários não sejam conflitantes. Então na época do “Agente G” eu continuava gravando o “X-Tudo”.
Diferença existe sim, mas, mais do que entre as duas emissoras, a diferença é entre a TV Cultura e todas outras. Para resumir o comprometimento da TV Cultura com conteúdo e todas outras emissoras comprometidas com Ibope e audiência.


OERJ: Nas primeiras temporadas o programa tinha apenas um cenário e apresentava desenhos, agora o programa sofreu alterações, como: outros cenários, novos personagens e o uso de somente de histórias com os personagens. Qual o motivo dessas mudanças?

Gomes: No primeiro formato, o programa durou até 2001. Deixou de ser produzido enquanto era gravado o “Ilha Rá-Tim-Bum” e depois em 2003 fui convidado a dirigir uma nova temporada do Cocoricó. Foi exatamente atendendo a linguagem que eu gostaria que o programa seguisse que foram feitas essas alterações. Eu queria que o cenário fosse mais proporcional ao tamanho dos bonecos, e também que eles tivessem muito mais movimentação em cena. Não ficasse estática atrás de objetos.


OERJ: Qual a principal diferença entre fazer o Cocoricó na TV, no teatro e agora no cinema?

Gomes: Fazer o teatro sim foi muito diferente, até porque as linguagens são bem diferentes. Houve um longo período de adaptação dos bonecos para o palco. Estudar as técnicas de manipulação de bonecos em teatro até descobrir qual se encaixava melhor em cada personagem. Já para o cinema não houve diferença nenhuma, não que não tenha diferença de linguagem entre cinema e TV. Tem e muita. Mas o que está sendo exibido nos cinemas são os programas da série de televisão. Ou seja, eles foram gravados (e não filmados) para serem exibidos na TV. São programas de TV exibidos no cinema. Até fico envaidecido em saber que nosso programa tem qualidade para ser exibido na telona, mas ainda sonho com a execução do longa. A ideia existe e já está em andamento. Aí ficará mais clara a diferença de linguagem entre esses dois meios.


OERJ: Como é ser uma pessoa tão importante para os programas infantis brasileiros de diversas gerações, mas ser uma imagem praticamente desconhecida, já que seu trabalho é feitos com bonecos?

Gomes: Prefiro dizer que sou alguém que trabalha para crianças há bastante tempo. Não consigo avaliar minha importância. Mas ser desconhecido fisicamente é muito bom. Tenho minha privacidade em qualquer lugar que vou mesmo cercado por crianças, ninguém me conhece.


OERJ: Qual, sua opinião sobre a programação para crianças e jovens na TV brasileira atualmente? E porque, quase não se produz mais ‘ programas infantis’, como nas décadas de 80 e 90?

Gomes: É difícil se ter uma opinião de uma coisa que praticamente não existe mais. Infelizmente nenhuma emissora de sinal aberto, com exceção da TV Cultura, produz programação infantil. Algumas até exibem desenhos animados importados, mas não passam disso. Falta interesse das emissoras. Provavelmente não consideram lucrativo. De modo geral não sabem, e nunca souberam como produzir programas divertidos com conteúdo. Usaram à exaustão a fórmula “apresentadoras bonitas se balançando, cantando, brincando e chamando desenhos”. A fonte secou e a total falta de ousadia e criatividade veio à tona. Como não sabem fazer e não consideram um negócio rentável, foi melhor parar de produzir.


OERJ: Por que o Cocoricó é o único programa da fase “áurea”, dos infantis da cultura, que ainda continua sendo produzido, após 13 anos de sua estréia?

Gomes: Sorte! Não posso dizer que é por competência ou qualidade. “Bambalalão”, “Rá-Tim-Bum”, “X-Tudo”, “Castelo Rá-Tim-Bum”, “Glub Glub” e “Qual é, Bicho?” por exemplo, eram ótimos programas que mereciam uma vida mais longa e alguns inexplicavelmente deixaram de ser produzidos.


OERJ: Como produzir programas infantis sem que a criança seja tratada como “debilóide” e nem como um “mini-adulto”, como vemos na maioria das produções atuais?

Gomes: Com respeito, com profissionais sérios, criando um programa dentro do orçamento disponível e priorizando a qualidade acima de outros interesses.


OERJ: É muito difícil, “pensar como criança” para entender como elas pensam, do que gostam e do que precisam e um programa para elas?

Gomes: Eu diria que é impossível um adulto “pensar como uma criança” para produzir um programa para elas. Temos mesmo é de pensar como adultos, e ver o que nós acreditamos que seja bom apresentar para essa criança. Nossa função é apresentar o cardápio para essa criança experimentar, digerir. Elementos que sejam importantes na formação desse pequeno ser.


OERJ: Com a má qualidade do ensino brasileiro atual, você acredita que a televisão é fundamental para a educação e formação de nossas crianças?

Gomes: Ela pode ser um auxílio, um apoio à educação e ao ensino, mas não podemos descarregar na TV a obrigação de substituir a baixa qualidade do ensino. A TV já ajudaria muito se não contribuísse para deseducar os jovens, mas infelizmente contribui. Voltamos na questão governamental. Vamos pagar melhor os professores, dar mais condição de ensino, cobrar melhor formação de nosso corpo docente nas escolas, e que a TV que não estrague o serviço dos professores.


OERJ: Na sua opinião, qual o futuro da programação infantil brasileira?

Gomes: Muito ruim, principalmente se pensarmos em produção nacional de programação infantil nos canais abertos. Hoje em dia já temos (ainda bem) parcerias internacionais com produções brasileiras na TV a cabo, como “Os Peixonautas”, parceria do Canadá com a produtora Pingüim, mas infelizmente é quase nada. Tomara que seja apenas o início dessas parcerias, porque se dependermos dos canais abertos, a tendência é ficarmos com produções apenas da TV Cultura, ou eventualmente da TVE, enquanto elas aguentarem.


OERJ: Como transformar as crianças de hoje em bons adultos?

Gomes: Posso responder pela minha forma de trabalhar. Primeiramente tratando as crianças com o maior respeito possível. Não podemos, e não devemos achar que pode fazer qualquer coisa para as crianças que elas aceitam. Nossa responsabilidade com elas é muito grande. Cabe a nós apresentar caminhos para que essas crianças possam escolher qual é o melhor para seguirem. É nossa obrigação apresentar um cardápio rico e variado. Trabalhamos para crianças que estão descobrindo tudo na vida. Vamos abrir o leque de opções para que elas tenham liberdade de escolha e um paladar educacional e cultural de qualidade.

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